Mais poderes ao Fisco exige maior proteção dos direitos dos contribuintes



“L’unique chose stable — c’est le mouvement — partout et toujours.”
Jean Tinguely (1925-1991)

Da Basileia a Belo Horizonte: no espaço de um mês, tive a alegria de participar de dois importantes congressos de Direito Tributário. Alegra a alma participar desses congressos, porque neles estamos reunidos pensando a ciência de nosso ofício, testemunhando intervenções admiráveis, acompanhados por colegas que militam no Direito Tributário em suas múltiplas vertentes: advogados, juízes, procuradores, professores universitários, auditores, consultores etc. Uma visão multifacetada das questões com as quais lidamos e a compreensão de distintos pontos de vista é o que, sem dúvida nenhuma, faz desses eventos insumos fundamentais para o engrandecimento profissional. Mas o melhor é que esse convívio também se estende a eventos sociais, que permitem uma confraternização descontraída e o fortalecimento de laços de amizade, o que, em última instância, é o que importa à existência.

Esse ano, porém, mesmo nos ambientes de confraternização, manifestava-se uma grande preocupação com os rumos que tem seguido a atuação das administrações fiscais. O endurecimento das medidas persecutórias de quebras do sigilo e da privacidade, o açodamento para a constrição patrimonial e o enfraquecimento das garantias dos contribuintes nos litígios fiscais são realidades que nublam o horizonte do Direito Tributário.
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Na Basileia, de 30 de agosto a 3 de setembro, foi realizado o 69º Congresso da International Fiscal Association (IFA). Um dos temas principais foi Practical Protection of Taxpayer´s Fundamental Rights, extremamente oportuno em um momento em que preponderam as discussões sobre os direitos dos Estados em ampliar e aprofundar as medidas de tributação no âmbito das ações Beps (Base Erosion Profit Shifting) promovidas pelo G20 e pela OCDE.

A importância da iniciativa foi ressaltada pelo presidente da IFA em seu discurso de abertura do congresso. O indiano Porus Kaka recorreu à imagem de um pêndulo que se movimenta de um lado para o outro buscando um ponto de equilíbrio para chamar a atenção para a escolha do tema da proteção dos direitos dos contribuintes como contraponto ao Beps.

Philip Baker e Pasquale Pistone foram os responsáveis pela elaboração do General Report, em que, a partir da análise de relatórios produzidos por colegas de 42 países[1], identificaram-se os chamados minimum standards, assim entendidas as práticas adotadas pela maior parte das jurisdições e, por isso, consideradas minimamente necessárias à proteção dos direitos dos contribuintes; e as best practice, assim consideradas aquelas práticas adotadas por certas jurisdições que sobressaem por oferecer alto grau de proteção aos contribuintes.

As práticas adotadas para proteção dos direitos dos contribuintes foram examinadas em relação à(s): (i) identificação dos contribuintes, declarações e comunicação entre fiscos e contribuintes; (ii) emissão de cobranças e autolançamento; (iii) confidencialidade; (iv) fiscalizações regulares; (v) fiscalizações especiais; (vi) revisão administrativa e judicial; (vii) sanções criminais e administrativas; (viii) cobrança executiva; (ix) fiscalizações internacionais (cross border); e (x) legislação fiscal.

A mesa principal que discutiu cada um dos pontos acima identificados e comentou os minimum standards e as best pratice contou com a participação do professor Luis Eduardo Schoueri, que, dentre diversas intervenções, mostrou grande preocupação com os riscos que os contribuintes brasileiros enfrentam de ter suas informações bancárias facilmente acessadas por autoridades e agentes tributários da União, de estados e de municípios, já que a lei apenas exige para o acesso a dados financeiros sigilosos que os respectivos exames sejam “considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente” (artigo 6º da LC 105/2001). Recordando que no Brasil há mais de 5.000 municípios, indagou: quem garante que a pulverização do direito de acesso à informação para tantos entes tributantes não servirá a outros propósitos menos nobres que uma real, efetiva e necessária fiscalização? Como assegurar a garantia constitucional da proteção dos dados privados se se entrega nas mãos de agentes fiscais, sem qualquer controle judicial prévio, o acesso aos dados financeiros? E concluiu pela urgência do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da ADI 4.010/2008, na qual se discute a constitucionalidade da referida disposição legal.

Na sequência desse debate, foi realizado um dos melhores painéis de todos os congressos da IFA que participei. A mesa composta por Jennifer Roeleveld (África do Sul), Philip Baker (Reino Unido), Monica Bhatia (OCDE), Ernst Czaert (Alemanha), Addy Mazz (Uruguai) e Xavier Oberson (Suíça) debateu a proteção dos direitos dos contribuintes no âmbito dos processos de troca de informações, um dos temas mais “quentes” do momento no mundo. O painel debateu os direitos dos contribuintes no contexto de mecanismos de troca de informações a pedido, segundo o artigo 26 do Modelo OCDE, e de troca automática, nos termos de acordos bilaterais ou multilaterais de troca de informações. A principal questão debatida no modelo de troca a pedido foi como assegurar o direito de defesa do contribuinte perante o estado requerido, isto é, o estado que irá fornecer a informação demandada pelo outro estado (estado requerente). O direito de ser ouvido como um dos direitos fundamentais do contribuinte foi sustentado com muita propriedade por Xavier Oberson, autor de um dos mais recentes e importantes estudos em matéria de troca de informações[2].

Mas a polêmica se acendeu mesmo nas intervenções do sempre lúcido e mordaz Philip Baker, que criticou severamente a inexistência de limites ao alcance da troca automática de informações e, principalmente, a impossibilidade de se garantir uma integridade das informações coletadas. No ambiente digital introduzido pela revolução tecnológica, quem assegura que a absurda massa de informações coletadas pelos governos não será objeto de ataques cibernéticos de hackers de todos os cantos do mundo? Quanto tempo poderão dispor os governos das informações? Para que finalidades essas informações serão utilizadas? O propósito fiscal justifica o fim da privacidade? O automatismo da informação é mesmo necessário? Mecanismos de pedidos específicos de execução célere não seriam mais prudentes?

A representante da OCDE não deixou de reconhecer que há riscos no caminho da troca automática, no que Baker retrucou: na minha terra, se diz que, quando o caminho é perigoso, não devemos segui-lo. A busca de um caminho seguro é dever das administrações, pois não há antagonismo entre a eficiência das autoridades fiscais e o respeito aos contribuintes. A conclusão geral do painel foi o reconhecimento inevitável de que, quanto maiores forem os poderes conferidos às autoridades fiscais, maior deve ser a proteção aos direitos dos contribuintes.
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Em Belo Horizonte, realizou-se nos últimos dias 23, 24 e 25 de setembro o XIX Congresso Internacional de Direito Tributário da Associação Brasileira de Direito Tributário (Abradt), do qual tive uma vez mais a honra de participar como palestrante. O tema central do congresso — Contencioso Tributário e Direitos Fundamentais — não poderia ser mais oportuno no momento atual, quando vivenciamos imensas dificuldades na condução dos litígios tributários, seja no âmbito administrativo, seja no âmbito judicial.

No âmbito administrativo federal, é pública e notória a paralização dos julgamentos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais desde 31 de março desse ano, após a deflagração da operação zelotes. Muito embora tenha havido uma sessão inaugural de reabertura dos trabalhos em 28 de julho passado, até a presente data os julgamentos não foram retomados em gravíssimo prejuízo aos contribuintes que não conseguem ver seus casos solucionados e têm os pretensos débitos atualizados pela Selic, que já atinge estratosféricos 14,25% a.a. Seria minimamente razoável que o Poder Executivo suspendesse a fluência de juros sobre os créditos tributários em discussão nos processos que estão sem qualquer andamento em razão de mais um de tantos vexaminosos escândalos de corrupção que assolaram o Brasil. Acresce que os advogados estão impedidos de exercer seu ofício há pelo menos seis meses, porque simplesmente não há julgamentos.

E, para piorar a situação dos contribuintes na esfera administrativa, tramitam no Congresso Nacional os projetos de Lei 543/15 e 544/15 que, como alertou nosso colega Gustavo Brigagão na sua última coluna[3], representam um gravíssimo retrocesso para os direitos dos contribuintes, pois conduzem à eliminação de padrões mínimos de proteção de direitos da cidadania.

O primeiro obriga os julgadores do Carf a adotarem os atos administrativos da Secretaria da Receita Federal do Brasil, tornando-os autômatos, desprovidos de liberdade para formular qualquer juízo de legalidade; o segundo é abominável, pois torna sem eficácia suspensiva o recurso voluntario ao Carf, abrindo as portas para o processo executivo antes de encerrada a discussão administrativa. O segundo projeto, como bem observa Gustavo Brigagão, viola diretamente o artigo 151, III do Código Tributário Nacional, e acaba por produzir situação semelhante àquela repudiada pelo Supremo Tribunal Federal na Súmula Vinculante 21 (“é inconstitucional a exigência de depósito ou arrolamento prévio de dinheiro ou bens para admissibilidade de recurso administrativo”) que visa justamente evitar que a lei crie medidas de constrição patrimonial como condição de acesso à esfera administrativa, cerceando o direito de defesa dos contribuintes.

Mas a situação se revela ainda mais grave nas execuções fiscais, quando se tem sistematicamente forçada a penhora online de recursos financeiros que, nos termos da legislação de regência, são depositados em conta única do tesouro e livremente utilizados pela União. Com isso, paradoxalmente, o credor estatal perde o interesse na celeridade da conclusão do litígio porque os recursos que persegue já foram recebidos, e o risco de perda dos mesmos só poderá se materializar com a conclusão do processo. Não é à toa que o maior litigante no Brasil é o Estado.
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Na mesa de encerramento do Congresso da Abradt, marcaram profundamente as palavras do ministro João Otávio de Noronha: “O interesse público não se confunde com o interesse da fazenda pública”. Banalizou-se a invocação genérica do interesse público pelas representações estatais para garantir o interesse de arrecadar da fazenda pública. O interesse de arrecadar não pode se sobrepor às limitações ao poder de tributar estabelecidas pela Constituição, aos direitos e garantias conferidos aos contribuintes, os verdadeiros interesses públicos.

Por isso, o pêndulo não pode parar. A estabilidade das relações pressupõe movimento. Os congressos de que participei ensinaram que o movimento em favor dos direitos dos contribuintes é a única forma de controlar um poder estatal cada vez mais absoluto.
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Parabéns ao professor Heleno Torres, pela posse no último dia 21 de setembro na cadeira de professor titular de Direito Financeiro, do Departamento de Direito Econômico, Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da USP. É com imensa alegria que acompanhamos essa trajetória brilhante e é uma honra dividir esse espaço com alguém tão admirável. Forte abraço amigo.

[1] O relatório do Brasil foi elaborado pelo professor Ricardo Lobo Torres e por André de Souza Carvalho. Cfr. Cahiers de droit fiscal international, volume 100 B, The practical protection of taxpayers fundamental rights, IFA 2015 Basel Congress, p. 165 ss. [2] International Exchange of Information in Tax Matters Towards Global Transparency, 2015, Editora Edward Elgar. [3] http://www.conjur.com.br/2015-set-23/consultor-tributario-propostas-senado-promovem-mudancas-preocupantes-carf
 é advogado no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Sócio do escritório Xavier, Duque Estrada, Emery, Denardi Advogados.

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 30 de setembro de 2015, 8h00

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