Por Henrique Guimaraes, advogado (BA) Especialista em Direito
Civil e do Consumidor
Graças
às políticas de facilitação do crédito, especialmente as voltadas para a
aquisição da casa própria, milhões de brasileiros, nos últimos anos,
tem firmado contratos de promessas de compra e venda com construtoras
por todo o Brasil. Boa parte desses ajustes dizem respeito à aquisição
de imóveis “na planta”, onde o consumidor adquire uma expectativa de
direitos, qual seja a de vir a ser dono de uma ou mais unidades
imobiliárias a serem construídas naquele empreendimento.
Esses contratos, que são de adesão, prevêem um plano de pagamento do
imóvel, pelo consumidor, com datas certas e pré-determinadas, sob pena
de sanções contratuais, como multa, juros e até a rescisão do contrato
com perda de parte do que tenha sido pago. Do outro lado, prevê a
obrigação da incorporadora/construtora construir o imóvel e entregá-lo
em prazo igualmente pré-determinado. Não obstante essa pré-determinação,
porém, as construtoras colocam nos contratos as chamadas cláusulas de
tolerância, que inicialmente eram de 90 dias, passaram para 120 e hoje a
maioria já trabalha com 180 dias. Cabe a pergunta, é legal esta
cláusula, à luz do direito do consumidor?
A resposta é não! O direito do consumidor tem entre os seus
princípios o do equilíbrio das relações de consumo, da equidade, a se
refletir na bilateralidade dos contratos de consumo. Ou seja, isso quer
dizer que a relação de consumo tem que ser equilibrada, na sua balança
de prestações e contra-prestações, não podendo pender com a desigualdade
de benefícios para uma das partes. Neste sentido o art. 51, IV do CDC:
Art. 51 -São nulas de pleno direito, entre outras, as
cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos ou serviços
que:
I – impossibilitem, exonerem ou atenuem a
responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos
produtos e serviços ou implique em renúncia ou disposição de direitos.
(...);
III – transfiram a responsabilidade a terceiros;
IV – estabeleçam prestações consideradas iníquas,
abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam
incompatíveis com a boa-fé ou aequidade;
Vale também a lição de Felipe Peixoto Braga Netto:
“Serão inválidas as disposições que ponham em desequilíbrio a
equivalência entre as partes. Se o contrato situa o consumidor em
situação inferior, com nítidas desvantagens, tal contrato poderá ter a
sua validade judicialmente questionada, ou, em sendo possível, ter
apenas a cláusula que fere o equilíbrio afastada”. (Felipe Peixoto Braga
Netto, in Manual de Direito do Consumidor, Salvador: Edições Juspodivm,
2009)
Por outro lado o Superior Tribunal de Justiça recentemente reconheceu a:
“imposição de um novo paradigma de boa-fé objetiva,
equidade contratual e proibição da vantagem excessiva nos contratos de
consumo (art. 51, IV)” (STJ, REsp.437.607, rel. Min. Hélio Quáglia
Barbosa, 4ª T., j. 15/05/07, DJ 04/06/07).
Qualquer cláusula em contrato de consumo igualmente não pode ofender
os princípios constitucionais da razoabilidade e proporcionalidade:
“NÃO PODE A ESTIPULAÇÃO CONTRATUAL OFENDER O PRINCÍPIO DA
RAZOABILIDADE, E SE O FAZ, COMETE A ABUSIVIDADE VEDADA PELO ART. 51,
IV, DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. ANOTE-SE QUE A REGRA PROTETIVA,
EXPRESSAMENTE, REFERE-SE A UMA DESVANTAGEM EXAGERADA DO CONSUMIDOR, E
AINDA, COM OBRIGAÇÕES INCOMPATÍVEIS COM A BOA-FÉ E A EQUIDADE” (STJ,
RESP 158,728, REL. MIN. CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, 3ª T., J.
16/03/99, P.DJ 17/05/99)
Assim, a maioria das entidades de proteção dos consumidores entende
que na medida em que o contrato confere à construtora o direito de
atrasar o cumprimento de sua obrigação (entregar a unidade imobiliária),
o mesmo direito deve ser conferido ao adquirente, de modo a ter um
“prazo de carência” para o cumprimento de suas obrigações – realização
dos pagamentos. Assim, se o contrato concede esse direito à construtora,
e não o defere ao adquirente, pode-se concluir que houve desrespeito à
exigência do CDC no que se refere ao equilíbrio contratual.
A jurisprudência já vem re conhecendo essa realidade:
“PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL – ATRASO NA ENTREGA DA
OBRA – INDENIZAÇÃO POR LUCROS CESSANTES – TEORIA DA IMPREVISÃO –
INAPLICABILIDADE PRORROGAÇÃO DO PRAZO DE TOLERÂNCIA – CLÁUSULA ABUSIVA –
CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.
(...)
3. A cláusula que faculta à construtora o adiamento da
entrega da obra por doze meses após o prazo previsto, sem qualquer
justificativa para tanto, é abusiva e nula de pleno direito, por
configurar nítido desequilíbrio contratual, rechaçado pelo Código de
Proteção e Defesa do Consumidor.
4. Recurso do autor provido parcialmente. Recurso da ré improvido. Decisão unânime.”
(TJ/DF – 5ª T. Cív., Ap.Cív. nº48245/1998, Rel. Des. Adelith de Carvalho Lopes, julg.08.03.1999)
“EMENTA – COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL A PRESTAÇÃO
PRAZO DE ENTREGA DO IMÓVEL COMPROMISSADO. INADIMPLÊNCIA DA
COMPROMISSÁRIA VENDEDORA. PRAZO DE TOLERÊNCIA PRVISTO NO CONTRATO.
Considera-se inadimplente a construtora e compromissária
vendedora quando não faz entrega do bem compromissado no prazo previsto
no contrato, autorizando o acolhimento do pedido de rescisão feito pelo
compromissário comprador, com devolução de todas as parcelas pagas,
devidamente corrigidas, mais juros de mora e outras penalidades
previstas em contrato.
O prazo de tolerância previsto em contrato somente é
justificativa para a prorrogação do prazo contratual de entrega do
imóvel compromissado quando ocorrer caso fortuito ou força maior
devidamente comprovado nos autos.”
(TJ/MJ – 7ª C. Cív., Ap. Cív. Nº361743-8, Rel. Des. José Afonso da Costa Côrtes, julg. 06.06.2002).
A exceção que admitiria a utilização da cláusula de tolerância, mesmo
assim em patamar mais razoável (90 dias), seria na ocorrência de um
caso fortuito ou de força maior. A doutrina e a jurisprudência convergem
no entendimento de que o fortuito e a força maior são apenas as
situações imprevisíveis e inevitáveis. Vejamos se é
possível encaixar esses conceitos nos principais argumentos das
construtoras para justificar os atrasos: a) problemas com o terreno da
construção, b) chuvas, c) greve dos trabalhadores da construção civil e
d) falta de materiais de construção e de mão-de-obra.
Quanto a ocorrência de problemas com o terreno da construção, é
evidente que trata-se de uma falha da construtora no estudo e avaliação
prévia do terreno pelos seus engenheiros. É um caso evidente de vício
(erro, falha) na prestação do serviço. Não se pode transferir a
responsabilidade por um erro seu aos consumidores que confiaram na
qualidade e responsabilidade da empresa. Como já mostrado acima, o CDC
possui normas que proíbem tais práticas (art. 51, I, II, e III).
Aliás, o STJ já tem jurisprudência refutando esse argumentoREsp331496/MGRECURSOESPECIAL2001/0086594-7:
RESPONSABILIDADE CIVIL, CONSTRUTORA, DESCUMPRIMENTO, PRAZO,
ENTREGA, IMOVEL, INDEPENDENCIA, ALEGAÇÃO, ATRASO, MOTIVO, CORREÇÃO,
DEFEITO, TERRENO, COMPROVAÇÃO, PROVA PERICIAL, EXISTENCIA, PRESUNÇÃO,
EMPRESA, CONHECIMENTO, FATO, MOMENTO, CELEBRAÇÃO, CONTRATO, NÃO
CARACTERIZAÇÃO, CASO FORTUITO, FORÇA MAIOR.TERMO FINAL, UTILIZAÇÃO,
VALOR, ALUGUEL, BASE DE CALCULO, INDENIZAÇÃO, DATA, ENTREGA DAS CHAVES,
JUIZO, CARACTERIZAÇÃO, DATA, DISPONIBILIDADE, POSSE, IMOVEL, AUTOR.
O risco da atividade econômica é do empresário, assim como o lucro,
com base no princípio capitalista insculpido na Constituição Federal de
1988. Pela Teoria do Risco, “aquele que lucra com uma situação deve
responder pelo risco ou pelas desvantagens dela resultantes” (ubi emolumentum, ibi onus; ubi commoda, ibi incommoda). O que desejam as construtoras em tais casos é gozar do bônus e transferir o ônus,
numa postura violadora da boa-fé objetiva e em nítido descompasso com
as noções modernas de empresarialidade responsável ou cidadã, que exige
que todas as suas ações sejam pautadas pela ética, sem exceção.
Quanto à alegação de chuvas como força maior, também só pode ser
aceita em casos excepcionais. Usemos como exemplo a capital baiana. É
sabido que todo ano Salvador passa por um forte período de chuvas de
outono. Logo, evidentemente, não se pode classificar como algo
imprevisível, a justificar a utilização da cláusula de tolerância, salvo
se o índice pluviométrico registrado for muito fora de padrão para o
período, algo não registrado “há décadas”, por exemplo.
Em relação a ocorrência de greves dos trabalhadores da construção
civil, devido à regularidade da sua ocorrência (todo ano tem) também não
se enquadraria como imprevisível. Menos ainda inevitável, já
que o seu advento depende de negociações com sindicatos que podem ser
antecipadas, melhor negociadas, gerenciadas, etc.
Sobre a falta de materiais de construção e de mão de obra no mercado,
a alegação chega a ser desrespeitosa para com os consumidores. Ora,
como se pode alegar falta de mão-de-obra e materiais de construção para
concluir no prazo um empreendimento em curso, se a mesma empresa
continua a lançar no mercado novos e novos empreendimentos??? É abusar
da inteligência do consumidor, argumento pífio!
A conta é simples, se determinada obra levaria 4 anos para ser
concluída com 100 trabalhadores, com 200 esse prazo cairia pela metade. É
exatamente o que as construtoras não querem fazer, desembolsar para
cumprir os prazos dos contratos elaborados por elas próprias, deixando
ao sabor de todo tipo de transtornos e prejuízos os consumidores
brasileiros, diante do olhar complacente e inoperante das autoridades e
legisladores do nosso país.
O que realmente está por trás dos epidêmicos atrasos nas construções
particulares de todo o Brasil são o acintoso desrespeito e
despreocupação das construtoras com as famílias que adquirem imóveis e
se planejam em cima do cronograma contratualmente firmado para a entrega
do empreendimento. É quando o sonho da casa própria vira pesadelo!
Só para registro, foi publicado o lucro trimestral de uma das construtoras que atuam nacionalmente, a PDG, que alcançou, no início de 2011, a cifra de R$239,00 milhões de reais! Crescimento de33% em relação ao primeiro trimestre de 2010. O
dado é emblemático e reflete a realidade desse mercado e a perversidade
que vem se praticando, impunemente, contra os consumidores nacionais.
De um lado polpudos lucros nunca antes alcançados pelo setor da
construção civil, do outro, um rastro de desrespeito e prejuízos
amargados pelos clientes.
A boa notícia é o crescimento do número de ações contra as
construtoras em razão dos atrasos, que só em São Paulo aumentou cerca de
60% nos últimos três anos, o que indica que o consumidor está tomando
consciência dos seus direitos e está mais dispostos a exercitá-los.
Vale lembrar que o consumidor com obra atrasada tem uma série de
direitos a pleitear em seu favor, portanto fique esperto, consumidor
consciente é consumidor bem informado!
BIBLIOGRAFIA / LEITURA RECOMENDADA
ALMEIDA, João Batista de. A Proteção Jurídica do Consumidor. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
BENJAMIN. Antônio Herman.V. / MARQUES, Cláudia Lima / BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos tribunais, 2009.
GRINOVER, Ada Pellegrini. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: Forense Universitária, 2004.
MARQUES, Claudia Lima em seu livro, Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 5ª Edição, Editora: Revista dos Tribunais, 2005.
NETTO, Felipe Peixoto Braga. Manual de Direito do Consumidor, Salvador: Edições Juspodivm, 2009
NUNES, Luiz Antonio Rizzato. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor: direito material. São Paulo: Saraiva, 2000.
NUNES, Luiz Antonio Rizzato. Curso de Direito do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2008.
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